segunda-feira, 23 de maio de 2011

Flusser

O aparelho de Flusser em Fahrenheit 451

Os livros trazem infelicidade, criam pessoas antissociais. Os romances provocam tristeza, lágrimas e suicídio. É proibido ler. Neste mundo, no qual a sociedade é formada por uma grande “família”, unida pela televisão, os guardiões são os bombeiros vestidos de preto, que trocam o extintor e o hidrante por lança-chamas destruidor de livros. Em ambientes sombrios, higiênicos, organizados e sem vida, vegetam pessoas programadas pelas imagens transmitidas pelas telas: a grande de destaque na sala e as de pequenos aparelhos espalhados pelos ambientes da casa, através das quais a “família” faz companhia a donas de casa solitárias, alienadas e drogadas.

Mas há resistência. Os “inimigos da paz pública” são lidos e protegidos pelos “elementos antissociais”, encaminhados para a reeducação depois de denunciados por vizinhos e parentes. Há outro tipo de resistência. Esta de difícil repressão explícita. Mulheres que denunciam a carência de calor, aconchego, amor, vida em pequenos gestos como a autocarícia. E o que resta aos leitores, aos amantes do mundo sensível? Fugir para uma comunidade onde se transformam em pessoas-livros: cada membro decora uma obra para que não seja perdida.

Essa é a história contada pelo filme Fahrenheit 451, de 1966, do diretor francês François Truffaut. Resultado de adaptação do romance homônimo de Ray Bradbury, de 1953. Na sociedade criada por Bradbury, está concretizado o temor do “totalitarismo robotizante dos aparelhos” discutido por Vilém Flusser (Filosofia da Caixa Preta), em defesa do dever da crítica em “mostrar a cretinice infra-humana dos aparelhos”, os efeitos de sua automaticidade. A imagem técnica (TV) faz o papel de único mediador entre o homem e o mundo, já que o texto foi abolido. Nesse estado totalitário representado por Truffaut,  homens e mulheres são programados pela imagem da “família” (Estado-aparelho) idolatrada por meio da tela alucinógena (subaparelho).

Os autômatos da comunidade amorfa de Fahrenheit 451 seguem alienados, idiotizados e amedrontados pela mais vaga possibilidade de contato com os livros, o “lixo” causador de sofrimentos e perturbações. Mas a história criada por Bradbury é otimista, aposta na transgressão até entre aqueles que defendem o “ritual de magia” da imagem, segundo a teoria de Flusser.

A decodificação do aparelho estado totalitário está simbolizada no  despertar do bombeiro (destruidor de livros) Montag, que salva obras e as leva para casa, onde passa as noites lendo. Uma de suas falas: “Tenho que ler. Tenho de absorver as recordações do passado”. Montag quer recuperar a consciência histórica, anulada pela consciência mágica de segunda ordem (Flusser p.11). Assim, o mesmo homem, que no início do filme expõe a variedade de seu trabalho de bombeiro (“às segundas, queimamos Tolstoi, às terças Miller, às quartas Whitman, às quintas e sextas Faulkner e aos sábados e domingos Shopenhauer e Sartre”) torna-se uma pessoa-livro.


Maria Cristina (Cris)

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