segunda-feira, 23 de maio de 2011

Racionalidade x Irracionalidade

Por: Deise Cristina Moreira da Silva

Falando de Arte e Matemática, talvez empolgada por Escher, talvez por outras inquietações... Quem sabe?

Esse “não sei o que” fez com eu vasculhasse meus baús – internos e externos – e nos baús externos, encontrei um artigo de Newton Bernardes* (Folha de S. Paulo – 16/junho/1989) do qual, hoje, visto com outros olhos (do meu baú interno), percebi que não poderia deixar de compartilhar com vocês. Então, apresento um recorte onde, na minha racionalidade, inseparável da minha irracionalidade, alimento minhas inquietações:

Uma questão fundamental divide as pessoas em dois grupos opostos: o dilema racionalidade – irracionalidade. Qual a base da racionalidade? Pode um sujeito isolado, por si só, elaborar um sistema gerado pela racionalidade? Na Física moderna, essas questões surgem quando as ideias quânticas atingem um grau de formalização matemática coerente. Porém, esse dilema sempre esteve presente nas inquietações do homem: oposição entre ciência e arte; ciência e magia. É na mitologia grega que encontramos o dilema claramente colocado nas figuras de Apolo e Dionísio.

O primeiro ponto de vista, chamado de racionalidade objetiva, atribui a um objeto singular, evento único, uma realidade acima de qualquer dúvida. Essa realidade objetiva não depende nem do sujeito nem da comunidade. Desta forma, a racionalidade se fundamenta na relação entre sujeito individual e evento único. Assim, Bernardes afirma que, todo objeto é racionalizável e, que a irracionalidade é uma etapa em direção à racionalidade - Esse é o ponto de vista da ciência tradicional. A verdade se encontra no objeto e não no sujeito. Este é mero instrumento na busca da perfeição apolínea do objeto.

O extremo oposto, onde a racionalização é uma relação entre uma coleção de sujeitos e uma coleção de objetos e está na estrutura de uma linguagem intersubjetiva comunal. Esse ponto de vista extremado é considerado duplamente dionisíaco. Um ponto de vista intermediário, ainda dionisíaco, é aquele segundo o qual o evento único, como objeto, é irracional como, por exemplo, o resultado do lançamento de um dado.

Apesar das intensas e continuadas tentativas de se descobrir o programa apolíneo que rege o mundo atômico quântico do evento único, esse programa ainda não foi descoberto. E assim, os fenômenos quânticos são tratados dionisiacamente, com o disfarce apolíneo de um programa de probabilidades.

Fenômenos físicos enormemente complexos tais como operações de sondas interplanetárias são bastante programáveis, por outro lado, muitos eventos aparentemente simples, tais como o instante da próxima desintegração de uma substância radiativa, são, até hoje, improgramáveis. A questão: “a improgramabilidade de um evento é reflexo de mero atraso científico ou de alguma impossibilidade fundamental?” Divide os físicos em dois grupos: os apolíneos e os dionisíacos, tipificados na história da física por Albert Einstein (1879-1955) e por Niels Bohr (1885-1962).

Na mitologia grega, sumariamente, Apolo representa o perfeito, a certeza, a razão, o programável, enquanto Dionísio reflete o irracional, o lúdico, o indizível.

A irracionalidade do evento único está presente em todas as situações em que costumamos imaginar a existência de uma racionalidade como, por exemplo, diante de uma roleta, quando saem cinco vermelhos em seguida, os apostadores se dividem em dois grupos: uns acreditam que “é a vez do vermelho”, outros acreditam que o vermelho já saiu demais e que agora “é a vez do preto”. Mas, nenhum dos dois grupos tem razão. O que vai sair é aleatório, irracional, imprevisível.

Outra característica do pensamento científico apolíneo é a análise, onde o todo é considerado como uma justaposição conjuntiva das partes. Mas até que ponto essa pressuposição é válida? Será que o conhecimento das partes é suficiente para a elaboração de um programa para o todo? A ciência tradicional responde a elas no sentido de afirmar que o poder da análise é ilimitado.

Basta considerar os objetos de arte para começarmos a duvidar da capacidade ilimitada da linguagem apolínea. Mesmo todas as palavras de um crítico de arte não esgotam um quadro. Uma obra de arte transcende às palavras, é irracional, indizível.

E, nos deparamos com a limitação da linguagem apolínea também em assuntos científicos. A pergunta vulgar: “O que veio antes: o ovo ou a galinha?” encerra uma armadilha linguística insuperável. Essa pergunta não tem resposta na linguagem. Na pergunta os objetos ovo e galinha são substantivadas como se fossem entidade autônomas, suscetíveis de uma disjunção alternativa: ou ovo ou galinha. Na verdade, ovo e galinha não são entidades autônomas. São um todo concomitante, sincrônico, e a fragmentação linguística desse todo nos possibilita uma demanda diacrônica que não tem cabimento. A separação da entidade global ovo-galinha em dois fragmentos é um abuso de linguagem. Nem galinha produz ovo, nem ovo produz galinha. Ovo já é galinha e galinha já é ovo. Qualquer um deles desapareceria sem a presença do outro.

O uso dessa linguagem (apolínea) permitia a Einstein colocar o seu ponto de vista apolíneo de maneira clara e coerente, enquanto Bohr jamais conseguiu expressar seu ponto de vista dionisíaco por meio da língua apolínea dos cientistas.

Tudo isso significa que a cultura ainda não desenvolveu uma língua científica não-fragmentalista. Como no caso da arte, a tentativa de fragmentação da obra nos leva ao acadêmico, ao objeto artístico dizível, ao programável, que assim deixa de ser arte e adquire o caráter do objeto científico apolíneo.

Em suma, resta a pergunta: são os objetos científicos essencialmente diferentes dos objetos de arte?

*Newton Bernardes (1931-2007), Físico – Professor titular aposentado e ex-diretor do Instituto de Física da Universidade de São Paulo – USP.

Nenhum comentário:

Postar um comentário